quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Alice Dote coloca o erotismo no centro da pintura contemporânea

"O Nome Disso Não é Fome” estreou no no Centro Cultural Banco do Nordeste, reunindo pinturas e videoperformance inédita da artista 

Na estreia de sua primeira exposição individual, “O Nome Disso Não é Fome”, a artista visual e pesquisadora Alice Dote leva ao Centro Cultural Banco do Nordeste um conjunto de 20 pinturas a óleo e uma videoperformance inédita que expandem sua investigação sobre o olhar erótico na arte. Em entrevista a O Estado, Dote afirma que a mostra nasce do desejo de “encarar, assumir e sustentar as próprias fomes”, gesto que atravessa tanto sua pesquisa quanto sua relação com os corpos que pinta.

Partindo de cenas íntimas registradas por ela mesma — “esse teatro erótico da intimidade”, como define — a artista tensiona posições historicamente fixadas entre quem observa e quem é observado. “Não me interessa inverter opressões, mas criar outras relações e alianças com as musas que dispo”, explica. Para ela, pintar também significa expor-se: “Essa pintura só pode existir porque o meu corpo também está deitado, entende?”

Com curadoria de Eduardo Bruno e Waldírio Castro, a exposição ocupa um corredor que o público só pode atravessar até o fim, metáfora espacial para o enfrentamento do desejo. Há também um espaço reservado +18, que, segundo Dote, funciona como dispositivo poético: um convite para que o espectador decida se quer ou não atravessar o véu do erotismo — “o jogo entre mostrar e esconder”.

Ao longo dos quatro meses em cartaz, o público terá acesso a atividades como visitas guiadas, pintura com modelo vivo e rodas de conversa sobre erotismo e arte. “Quero que quem vê se relacione eroticamente com a pintura”, diz a artista. “Que olhe de esguelha, que imagine o interdito, que alargue as cenas. Que saia lambendo os dedos — e ainda com fome."
DIVIRTA-CE - De onde veio “o nome disso não é fome” que dá nome a sua exposição e como foi o processo de construção das 20 obras?
ALICE DOTE - Essa frase me marcou de imediato quando a ouvi, de alguém com quem me relacionava. Ela me chegou de forma acusatória, e creio que carregada de intenção de culpa e constrangimento pelas minhas decisões no campo afetivo-sexual. A associação subjacente com os comportamentos alimentares também foi inevitável. Por isso, me pareceu uma frase formulada de forma tão sofisticada, cheia de subtextos delicados, que, talvez também por isso, eu não pude deixar de me apropriar dela, torcê-la, esgarçá-la e transformar isso em outra coisa. Essa acusação do meu apetite acabou me fazendo encarar, assumir e sustentar minhas fomes. Foram cerca de oito meses de produção das obras que logo se entenderam como uma série. Como característico da minha poética, as pinturas têm como disparo a fotografia. Ao longo desse período, fui sendo cada vez mais convocada pelos registros que faço desse “teatro erótico da intimidade”, cenas íntimas que trazem seja outros corpos, seja vestígios do que ali acabou de acontecer. Foi uma produção intensa, de muito investimento de libido na própria prática de ateliê. Nem todas as pinturas estão na exposição. Além do que eu já havia produzido, eu desejei produzir uma obra inédita pensada especificamente para o espaço expositivo do Banco do Nordeste Cultural, e o trabalho curatorial de Eduardo Bruno e Waldirio Castro conduziu a produção de novas imagens, alargando um entendimento de erotismo. Juntos, também chegamos à concepção de uma videoperformance, uma linguagem bem nova na minha prática artística.

DIVIRTA-CE - Na história da arte, o olhar masculino moldou a imagem da mulher. Ao inverter essa relação, despindo e observando homens, o que muda para você e para quem vê?
ALICE DOTE - De fato, uma das marcas mais evidentes do regime de visão dominante no sistema da arte ocidental é a assimetria de gênero que se estabelece entre quem vê e a coisa vista: o homem é o detentor do olhar; a mulher, o objeto de contemplação e controle. A sexualidade feminina ainda é colocada em discurso através das imagens produzidas por um olhar masculino. Percebo como, ao longo da minha trajetória, tenho tentado não exatamente “inverter” essa relação, reproduzindo um sistema opressivo, mas tentado criar outras relações, negociações, alianças entre mim, como artista, e as “musas” que dispo. Além disso, sei que nenhuma posição é assegurada apenas porque a câmera e o pincel estão agora em minhas mãos. Essas posições não são fixas, e sei que também me exponho, me ofereço, abro um espaço de vulnerabilidade. Essa pintura só pode existir porque o meu corpo também está deitado, entende? Então, não suprimo o homem nem me interessa subjugá-lo: ele é o outro com quem também busco construir um éthos erótico de afirmação da vida.

DIVIRTA-CE - A exposição cria um espaço reservado para obras com nudez com classificação indicativa. Esse gesto é também um comentário sobre censura e desejo? O que o segredo desperta na experiência do público?
ALICE DOTE - Existe uma exigência de classificação indicativa para obras em que a nudez implique um conteúdo sexual ou em que se estimule um contexto erótico. Essa política pública não age no sentido de censura, mas de recomendação (no intuito de informar aos pais e garantir o direito de escolha). Então, na exposição, o que de início era uma questão objetiva virou uma oportunidade de exercício espacial e curatorial. O espaço reservado se utiliza do interdito e da ambivalência constitutivos do erótico (em contraste com o pornográfico). O espaço do erótico é o da insinuação, da sugestão, do jogo entre mostrar e esconder. Isso marca toda a exposição, mas a existência de um espaço onde se adentra por uma cortina (o véu que afastamos para revelar algo) atiça a imaginação e convoca o espectador à decisão de se levar por ali. Eros tem a ver com fronteira, inclusive. E, na exposição, além desse espaço, quero tratar disso ao reconhecer e brincar com essas fronteiras, chamar o heterogêneo para perto, e propor um movimento em direção a algo que ainda não sabemos o que é (mas que, exatamente por isso, nos move).  

DIVIRTA-CE - Sua pesquisa toca em dimensões íntimas, mas o gesto de assumir o olhar erótico feminino é, inevitavelmente, político. Em que medida a exposição é também uma afirmação de poder e autonomia?
ALICE DOTE - Todo o meu trabalho vem acontecendo sem se furtar de uma posição política, não necessariamente como manifesto deliberado, mas intrínseco a sua própria poética. Se já temos toda uma problemática envolvida em sermos mulheres atuando em um território de prerrogativa masculina, imagina o que acontece quando adentramos o campo da sexualidade e do erotismo. Há uma pergunta simples: quantas artistas, especialmente pintoras, conhecemos, na história da arte e contemporaneamente, atuando nesse campo? E quantas delas se voltam à nudez, e à nudez masculina? 
De início, devo dizer que sei que me filio a uma genealogia de artistas mulheres que se contam através do gesto artístico, desafiando uma tradição masculina. Tenho encontrado muita força nessas mulheres, seja na pintura ou na literatura, no atrevimento de sustentar a força erótica da vida. 
Há uma decisão de se despedir da musa, ou melhor, liberar a musa para confundir e se confundir, fazer dela outros usos. Há uma postura de dispensar o lugar de decoração, de apostar no trabalho para engordar as feras, de assumir o risco de expor e expor-se ao se utilizar da matéria da própria vida como matéria poética, de sustentar o desejo e suas consequências. De se utilizar do trabalho artístico como trabalho contínuo (de toda uma vida) de tomar o desejo como bússola ética da vida. Essa também é uma postura de se apropriar do próprio corpo, das imagens criadas não só sobre esse corpo, mas especialmente por esse corpo. 

DIVIRTA-CE - Você fala do erotismo como “procedimento” e do envolvimento com “a carne da imagem”. Que tipo de relação tátil ou sensorial você busca entre o espectador e a pintura?
ALICE DOTE - Esse envolvimento erótico com a pintura acontece para mim, como pintora, e desejo que quem vê se relacione também eroticamente com a pintura. A pessoa espectadora é como a terceira pessoa da relação. Não é o triângulo como a constituição radical do desejo? Espero que olhe de esguelha ou deite na cama, imagine nos interditos, alargue as cenas. Para além da materialidade da pintura, que eu acho absolutamente sedutora, voluptuosa, apetitosa, e que convida a um olhar tátil, o esforço imaginativo também é uma ação erótica. Desejo que saiam da exposição lambendo os dedos e ainda com fome.

DIVIRTA-CE - Afinal, que desejo habita esse espaço entre o corpo e a tela?
ALICE DOTE - Não sei se pinto para me emocionar, ou me emociono para pintar. É como se a pintura me empurrasse a ir mais longe, mais fundo, mais outra. O tesão está, afinal, na própria pintura. É ela que me seduz, me flecha, me atormenta até. E nisso, quando nos envolvemos amorosamente com o que fazemos, há uma relação erótica das mais fortes e das mais inegociáveis.

Nenhum comentário: