Fernanda Abreu celebra a longevidade do álbum Da Lata, lançado em 1995, com produção de documentário, livro, remix e relançamento em vinil
“Quando quis criar um disco que incorporasse o sentimento brasileiro, surgiu a ideia do batuque da lata. O tamborim e o pandeiro representam o samba como cultura oficial; a lata simboliza o mesmo batuque, porém no universo desigual do Brasil. A lata é a alternativa ao caminho oficial”, declarou Fernanda Abreu, em 17 de novembro de 1995, no jornal O Globo, data em que a turnê de seu mais recente e conceitual trabalho — lançado em julho daquele ano, o álbum Da Lata — chegava ao Rio de Janeiro. Nessa reflexão, Fernanda contextualizava o estágio artístico de seu trabalho, resultado da mistura daquela batucada hipnótica e irresistível com elementos da música pop eletrônica, ponto forte do disco e do show.
Assertivas, as resenhas das apresentações, que já haviam passado por outras regiões do país, foram amplamente positivas: “Fernanda transforma a lata num mito de modernidade”, “O show é explosivamente dançante” e ainda “As letras de A Lata, Veneno da Lata e Brasil é país do suingue celebram a alegria e musicalidade do Rio, projetando isso ao nível nacional”. De fato, as letras das canções, apoiadas na fartura de “grooves”, abordavam questões importantes da ex-capital do Brasil, — mas não apenas dela, apontavam temas pertinentes a outras metrópoles, nacionais e do terceiro mundo, como ilustra um trecho do poema do parceiro Chacal, na faixa "A Lata”.
Meses antes, a crítica especializada já havia elogiado Da Lata pelo seu “sound design”, pelo cruzamento de gêneros musicais e também pelo elenco estelar de parceiros e colaboradores (Felipe Abreu, Herbert Vianna, Hermano Vianna, Fausto Fawcett, Laufer, Chacal, Luiz Stein, DJ Memê, Liminha e Will Womat), além, é claro, de destacar o olhar clínico de Fernanda, exaltando a efervescência cultural suburbana daquele momento. O mote em questão — a lata, este artefato extremamente útil e versátil, feito de metal pouco valioso para alguns, mas indispensável para a sobrevivência de centenas de milhares de pessoas — atravessa o nosso consciente coletivo há décadas, carimbando-o com simbolismos múltiplos, especialmente naquele que chamamos de “Brasil Real”.
Há de se considerar, também, um evento amplamente conhecido, ocorrido em setembro de 1987, quando tripulantes da Solana Star atiraram ao mar parte de um carregamento de duas toneladas de maconha, oriundas da Tailândia, quando a força-tarefa da Polícia Federal se aproximou da embarcação, que navegava a cerca de 300 km da costa brasileira. Dias depois, as latas contendo a droga chegaram às praias do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outras regiões – daí a origem do termo “da lata”, adotado por comunidades de jovens, atribuindo à gíria o sentido de algo bom, de qualidade superior, especial e até proibido.
Deliberadamente, Fernanda Abreu abordou temas sensíveis, culturais e sociais, sob outros ângulos, ressignificando ideias e situações comumente associadas à miséria, pobreza, carência, precariedade e até à falta de amor-próprio do brasileiro, nomeada “complexo de vira-lata” por Nelson Rodrigues. Assim como a carioca Nara Leão, que abraçou e redimensionou a música do morro, colocando-a nos palcos da zona sul do Rio, Fernanda Abreu tomou para si o batuque reinventado no subúrbio e na favela carioca, promovendo seu diálogo com “samplers”, “drum machines”, “sequencers” e demais avanços da tecnologia de ponta que haviam surgido.
A linha estética do projeto visual na totalidade — capa e encarte do CD, fotos de divulgação, cenário e figurino, resultado do trabalho de uma equipe formada por profissionais de renome – Luiz Stein (cenógrafo e ex-marido de Fernanda), Walter Carvalho (fotógrafo) e Claudia Kopke (figurinista) –, alinhada à sonoridade e à temática das letras, unificaram os conceitos do álbum e do show. A turnê consolidaria, de vez, o status do trabalho da cantora, compositora e “front woman” Fernanda Abreu.
Concebido por ela, produzido por Liminha e Will Womat, do britânico Soul II Soul, "Da Lata" emplacaria quatro singles no rádio, ganharia videoclipes bem produzidos com coreografias da amiga Deborah Colker, receberia o prêmio disco de ouro da ABPD pela venda superior a cem mil cópias e seria lançado no mercado europeu, internacionalizando o trabalho da moça. Lançado pela EMI (hoje Universal Music Brasil), Da Lata ascenderia à nobre categoria de álbum clássico, permanecendo relevante após seu lançamento, transpassando modas e tendências da indústria cultural e tornando-se um autêntico clássico do pop brasileiro, com altíssimo valor de replay.
Em 2025, a multifacetada Fernanda Abreu reafirma-se, mais uma vez, como ótima gestora de sua obra, celebrando os trinta anos de Da Lata, álbum ambicioso e atemporal. A comemoração se materializa em diversos projetos a saber:
– Documentário realizado pela produtora Garota Sangue Bom e coproduzido pela TV Zero, dirigido por Paulo Severo, com roteiro deste e de Fernanda, com bastidores do processo criativo de Da Lata através do impressionante acervo de imagens registradas em foto e vídeo da pré-produção e gravação no Rio de Janeiro, da mixagem em Londres e das apresentações da turnê. Além de entrevistas atuais, analisando conquistas e revelando adversidades que Fernanda teve que à época.
– Relançamento do álbum Da Lata em vinil, suporte físico que, na prática, importa hoje, que será lançado pelo Clube do Vinil, da Universal Music Brasil.
– O hit Garota Sangue Bom, o 3º single do disco, ganha um remix inédito, assinado por Bruna Ferreira e Lívia Lanzoni, DJs e produtoras de São Paulo que formam o duo “From House to Disco”. A faixa, que também terá lançamento pela Universal Music Brasil, chegará às plataformas de streaming no dia 13 de novembro.
– Lançamento do livro Da Lata – 30 anos, editado pela Cobogó e coeditado pela Garota Sangue Bom, reunindo textos de colaboradores, matérias publicadas, fotos conhecidas e inéditas do projeto visual do disco, da turnê e do figurino, além de cartazes e itens da sua memorabília.
Há mais de duas décadas, trabalho com pesquisa e resgate de acervos e afirmo que raríssimas vezes encontrei alguém no mercado fonográfico nacional — desde gravadoras até artistas — com o mesmo cuidado e dedicação com sua obra como a artista tem demonstrado. Fernanda Abreu, uma das pessoas mais organizadas e profissionais de nosso meio, vislumbrou, ao longo do tempo, o que o futuro lhe reservaria, se preparou e os 35 anos de carreira solo, comemora sua longevidade como artista brasileira, que se tornou uma das principais vozes femininas de sua geração, potente e engajada. Sua obra discográfica é o reflexo desse comprometimento, expresso nos nove álbuns gravados ao longo de sua jornada, retratando, em canções, a beleza e o caos da vida cotidiana nas metrópoles, especialmente do Rio de Janeiro.
O amor pela cidade onde nasceu, vive e se identifica plenamente, rendeu-lhe um título que ostenta com orgulho, relatado por ela mesma no documentário Da Lata – 30 anos: “desde 1995 até hoje, qualquer pessoa que vai me apresentar, em qualquer evento, seja uma cerimônia, seja um show, em qualquer lugar, diz: “com vocês, a garota carioca suingue sangue bom – Fernanda Abreu!!!”.
Charles Gavin, setembro de 2025
Confira o repertório do vinil “Da Lata”
Lado A:
1 – “A Lata” (Fernanda Abreu / Chacal / Marcos Suzano) – Participação especial: Chacal
2 – “Veneno da Lata” / Incidentais: Vamo Bate Lata / A Lata (Will Mowat / Fernanda Abreu) – Participações especiais: Hebert Vianna e Sofia Stein
3 – “Garota Sangue Bom” / Incidental: We Funk U2 – Edit (Fernanda Abreu / Fausto Fawcett) – Participação especial: Fausto Fawcett
4 – “Tudo Vale A Pena” / Incidental: Miséria No Japão – Edit (Fernanda Abreu / Pedro Luis)
5 – “Um Dia Não Outro Sim” (Fernanda Abreu / Marcelo Lobato) – Participação especial: Daddae Harvey
6 – “A Tua Presença Morena” (Caetano Veloso)
Lado B:
1 – “Brasil É O País Do Suingue” / Incidental: I Didn't Come – Edit (Fernanda Abreu / Fausto Fawcett / Laufer / Hermano Vianna)
2 – “Esse É O Lugar” (Fernanda Abreu / Fernando Vidal / Aurelio Dias)
3 – “Dois” – Edit (Fernanda Abreu / Will Mowat / Pedro Luis)
4 – “Somos Um” (Doomed) - Edit (Mathilda Kovac)
5 – “Sla 3 (São Sebastião Lembrança Aérea)” (Fernanda Abreu / Marcelo Lobato / Chico Neves)
6 – “Babilônia Rock” (Robson Jorge / Lincoln Olivetti / Guto Graça Mello / Naila) - Participação especial: Cláudio Zoli
O vinil "Da Lata" será o destaque do mês de novembro do Clube do Vinil.
Vendas exclusivamente na UMusic Store, a partir de 1º de novembro de 2025.
Fotógrafo Mateus Rubim
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